AS MULHERES DA SEGURANÇA URBANA
A GUARDA CIVIL MUNICIPAL FEMININA DE SANTO ANDRÉ
Heleni B. F. de Paiva Lino
Carla Cristina Garcia
Priscila Ferreira Perazzo
RESUMO: A presença feminina nas polícias brasileiras teve início no Brasil em 1955, quando foi instituído um corpo de guardas civis incorporado em 1970 à Polícia Militar do Estado de São Paulo. Com objetivo de cobrirem áreas de atuação em que o policiamento repressivo encontrava dificuldades, como crianças e idosos abandonados e, mulheres e adolescentes autores de infrações. Foram incorporadas à instituição por serem dóceis, versáteis e de melhor trato com a população. Seguindo a mesma concepção da Polícia Militar; a Guarda Civil Municipal de Santo Ande em 1989, incorporou ao seu efetivo à presença feminina. Examinar o seu cotidiano, as relações de gênero, a sua percepção acerca da discriminação é o escopo do texto apresentado.
PALAVRAS-CHAVE: polícia; relações de gênero, gestão de segurança pública.
ABSTRACT: The feminine presence in the Brazilian policies had beginning in Brazil in 1955, in the state of São Paulo, when a body of civil guards incorporated in 1970 to the Military Policy of the State was instituted. With objective to cover areas of performance where the repressive policing found difficulties, as aged and children abandoned, women and adolescents authors of infractions. They had been incorporated the institution for being docile, versatile and of better treatment with the population. Following the same conception of the Military Policy; the Municipality Civil Guard of Santo André in 1989, incorporated its cash to the feminine presence. To examine its daily one, the sort relations, its perception concerning the discrimination is the target of the presented work.
KEYWORDS: police, sort relations, public security management.
INTRODUÇÃO
A presença feminina nas policias brasileiras não é recente. Em 1955, o Estado de São Paulo instituiu um corpo feminino de guardas civis que, em 1970, foi incorporado a Policia Militar do Estado. Embora a base legal para a admissão de mulheres tenha sido estabelecida ainda no período autoritário, por meio de portarias do Estado-Maior do Exército, a criação efetiva dos corpos femininos quase sempre ocorreu durante a fase de abertura política ou mesmo após a redemocratização do país. Desse modo, somente nos
anos 1980, com o fim da ditadura militar, houve a efetiva incorporação de mulheres nas polícias de diversos Estados da nação,
visando originalmente cobrir certas áreas de atuação em que o policiamento essencialmente repressivo, estaria encontrando dificuldades com o trato com crianças abandonadas, ou com mulheres e adolescentes autores de infrações. (Soares, 2004, p.1)
Deve-se ressaltar, no entanto que, sua participação no contingente total das PMs é de apenas 6%, enquanto na Polícia Federal é de 10% e nas guardas municipais é de 11%, alcançando 19% nas Polícias Civis.
Alguns estudiosos apontam o fato de que tal incorporação não respondeu a uma demanda da sociedade, como no caso das Delegacias Especiais da Mulher ou na Polícia Civil, resultado de iniciativas e cobranças do movimento feminista que tinha como finalidade dar atendimento especializado, prestado, sobretudo por policiais civis femininas, às mulheres vítimas de violência:
Não há registro de mobilização social equivalente no que se referem as PMs: nem demanda de serviços específicos que seriam mais bem desempenhados por mulheres, nem pressões para a democratização de um espaço profissional ate então exclusivamente masculino. Tudo indica que a inclusão do contingente feminino teve origem em motivações internas às próprias policias militares e/ou aos respectivos governos estaduais, antes que em apelos diretos da sociedade civil ou da chamada opinião pública. (Soares e Musumeci, 2005, p.16)
Para Soares e Musumeci (2005), havia, aparentemente, um desejo de "humanizar" a imagem da polícia, fortemente associada a ditadura - desejo que teria levado, por exemplo, a introdução de disciplinas de Direitos Humanos nos currículos policiais. Por outro lado, mesmo com a redemocratização política do País, o aparelho de segurança publica não passava (e não passou até hoje) por nenhuma mudança paradigmática em sua estrutura, que associasse a incorporação de mulheres a um processo mais amplo de reformas. Apesar dos intensos debates, não houve ainda projetos que consiguissem adequar as polícias à democracia que, segundo Luiz Eduardo
Soares (2000), foi a única das instituições nacionais que não foi reformada após o fim da ditadura.
Para a Soares e Musumeci (2005), na falta de uma elaboração explícita, podem-se inferir algumas motivações subjacentes, examinando-se as listagens das atividades previstas para os efetivos femininos das policias da maioria dos Estados. Não se trata necessariamente das tarefas de fato desempenhadas pelas mulheres, mas sim do que se idealizou para elas como possível e desejável:
Trabalho preventivo e assistencial junto a crianças e adolescentes, mulheres e idosos; Atendimento a e condução de alcoólatras, drogados e mendigos; Policiamento ostensivo em portos, aeroportos e terminais rodoviários; Policiamento de trânsito; Policiamento de áreas comerciais e turísticas; patrulha de grandes eventos; Trabalhos comunitários e assistenciais em geral; Revista de mulheres detentas ou suspeitas, e de visitantes do sexo feminino em estabelecimentos penais; Serviços internos de secretaria, telefonia, arquivo, recepção etc. (Soares e Musumeci, 2005, p.17)
Segundo as pesquisadoras, a missão das mulheres policiais seria, assim, funcionar como uma espécie de cartão de visita, que sem alterar paradigmas, sinalizasse mudanças e modernização. A autora ressalta ainda, na lista de atividades acima, o trabalho assistencial junto a comunidades, a crianças e adolescentes, a mulheres e idosos, a mendigos e bêbados, etc:
Por reafirmar estereótipos de gênero – vocação assistencialista das mulheres; associação entre "sexo frágil" e atendimento aos fragilizados, esse tipo de trabalho talvez tenha sido percebido como um outro campo estratégico de relações públicas, de "suavização" ou humanização da imagem da polícia, sem que para tanto fosse necessária alterar a cultura institucional hegemônica ou as práticas tradicionais de policiamento. (Soares e Musumeci, 2005, p.19)
Diante do quadro exposto, cabe perguntar que papel as mulheres policiais realmente vêm desempenhando nestes últimos anos? Sua presença provocou mudanças significativas na estrutura da corporação? As resistências internas vêm sendo superadas? Que balanço, em suma, se pode fazer da participação feminina nessas instituições?
Nesse sentido, propõe-se nesse artigo apontar o cotidiano de trabalho das guardas civis femininas na cidade de Santo André, identificar as relações de gêneros entre os guardas e anunciar, mais que concluir ou solucionar, os problemas existentes no interior da corporação e que se refletem nas posições de gestores e sociedade civil sobre a segurança pública na cidade e sua descentralização do poder do Estado.
A GUARDA CIVIL MUNICIPAL (GCM) E A QUESTÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA.
A primeira polícia municipal no Brasil surgiu em 1842, no antigo município neutro da corte – cidade do Rio de Janeiro – com a denominação de Corpo das Guardas Municipais Permanentes. Em São Paulo, com a finalidade de garantir a segurança pública, Joaquim Floriano de Toledo, Presidente da Província, criou as guardas municipais em março de 1866. No século XX, com o aumento da violência na cidade de São Paulo, o Governo de Carlos de Campos editou a Lei nº 2142, de 22 de outubro de 1926, criando a Guarda Civil nos moldes da polícia de Londres, uniformizada e hierarquizada, mas tipicamente civil, voltada para o patrulhamento das ruas e para o trato com o público.
Aprovada na capital paulista, passou a ser padrão para outras cidades brasileiras. Garantida por lei, perdurou até a década de 1960, sendo posteriormente extintas pelo Decreto Lei nº 1072, de 30 de dezembro de 1969, durante o governo militar. No Estado de São Paulo, a Guarda Civil foi então, em 1970, unificada à Força Pública, dando origem à Polícia Militar do Estado de São Paulo. Com o fim da ditadura militar, em 1986, a cidade de São Paulo criou a Guarda Civil Metropolitana nos moldes da antiga Guarda Civil. (Braga,1999)
De toda forma, as municipalidades buscaram, por muito tempo, absterem-se da gestão da segurança pública, atribuindo esta função aos governos dos Estados. No entanto, o recrudescimento da violência e da criminalidade no espaço urbano, seja nas metrópoles ou nas cidades de pequeno e médio porte, provocou a discussão da segurança pública na agenda dos governos municipais. Os gestores locais, premidos pelas comunidades, passaram a constituir e fortalecer as guardas municipais, bem como reivindicar mudanças constitucionais, com o objetivo de estender prerrogativas das policias do Estado para as Guardas dos Municípios, qual seja o poder de polícia.
Segundo dados da Fundação Seade e Assembléia Legislativa de São Paulo (1999) só o Estado de São Paulo, em 1997, já possuía 176 municípios com guardas municipais. A Região Metropolitana de São Paulo em 2001, de seus 39 municípios, 23 já tinham guarda municipal, segundo dados do Fórum Metropolitano de Segurança Pública, estes avaliados pelo Plano Nacional de Segurança Pública (2004), sem metas, identidade institucional, relacionamentos sistêmicos com as forças estaduais da segurança pública, e sem uma política que as constitua como protagonistas da segurança municipal.
Com limitações constitucionais, para atribuições de polícia preventiva e ostensiva, em função do inciso 8º do artigo 144 da Constituição Federal, a prática das corporações vem demonstrando ao contrário: esta corporação encontra-se na condição de integrar o sistema de segurança pública se aprovada pelo Congresso Nacional a Emenda Constitucional número 534/2002, já aprovada em primeiro turno pelo Senado Federal.
Nos últimos anos, as cidades brasileiras vêm aumentando seu contingente civil de segurança pública. O país conta hoje com mais de 300 Guardas Civis Municipais alocando cerca de 60 mil guardas.
Ora considerada como servidora pública na proteção e bens de serviços do município, ora como a verdadeira polícia municipal, a instituição têm se defrontando com uma real crise de identidade e de natureza gerencial. A presença feminina gradualmente inserida na instituição demonstrou que também não foram superadas na corporação as desigualdades nas relações de gênero.
A GUARDA CIVIL MUNICIPAL EM SANTO ANDRÉ E A INCORPORAÇÃO DAS MULHERES
Em Santo André, a Guarda Civil Municipal foi criada pela Lei nº 6125, em 31 de maio de 1985, com o objetivo de praticar a vigilância noturna e diurna dos logradouros públicos e suas repartições, subordinando-se ao Departamento de Trânsito da cidade. Por sua vez, adquiriu organização administrativa própria somente em 1991. Mesmo assim, desde 1989, que a GCM de Santo André contou com efetivo trabalho de segurança e colocou a primeira mulher no comando das guardas da cidade.
A ascensão feminina na Guarda Civil Municipal firmou-se a partir de 1998, quando o número de mulheres contratadas passou para 30 guardas femininas, chegando a 96 em 2004, em um universo masculino de 341 guardas.
A região do Grande ABC, englobando as sete cidades de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires, contava no início da década de 2000 com 1.754 Guardas Municipais, dentre eles 300 mulheres.
A entrada das mulheres na GCM de Santo André acompanhou as propostas das policias militares de humanizar o tratamento com seu público, acreditando que por suas características dóceis e versáteis, as mulheres poderiam lidar melhor com os munícipes.
A PESQUISA
Foram entrevistadas 12 guardas femininas da corporação andreense, que responderam cada uma, um questionário de onze perguntas acerca de temas como tempo de serviço, as condições das mulheres na corporação e o tratamento recebido em função do gênero e, ainda, sobre direitos femininos e ampliação dos poderes das Guardas Civis Municipais. As entrevistadas foram selecionadas por José Renato da Silva, Comandante da Guarda Civil Municipal, e responderam ao questionário em 15 de abril de 2004, comparecendo na Câmara Municipal de Santo André. Por terem sido encaminhadas para tal finalidade, apresentaram-se fardadas e desarmadas.
Da tabulação desse levantamento pode-se apreender que as mulheres entrevistadas estavam entre 30 e 39 anos de idade, a maioria casada e com filhos, cujo tempo de serviço nessa corporação variava de 3,5 a 13 anos. O principal motivo relatado que as levara ingressar na GCM foi a busca de emprego estável, pois encontravam-se desempregadas à época em que prestaram concurso.
Ao serem questionadas sobre a forma como a população andreense as recebe nas ruas, foram unânimes em afirmar que os munícipes consideram as guardas femininas como um “avanço” ou “evolução” da corporação. Também recebem sempre, o que chamam de elogios à mulher, ao sexo ou ao corpo, não tendo caráter erótico, sensual ou libidinoso, mas sempre relacionados à atuação profissional, salientando objetivos como “mais educadas, dedicadas, delicadas e pacientes no serviço”, em relação ao tratamento dos guardas homens com a população.
Por nossa indagação, foi unanimemente rechaçado pelas guardas femininas o fato de as mulheres prestarem serviço diferenciado dos homens na Guarda Civil. Consideram-se aptas ao mesmo serviço, recebendo o mesmo treinamento que lhes
permite a mesma competência e eficiência na prestação. Consideram-se, também, “mais preparadas” para o trabalho, pois:
na cidade de São Paulo foi feita uma pesquisa que comprova que as mulheres são mais eficazes, mais solidárias, e no horário de alto risco são mais ágeis, embora menos precipitadas e quase nunca efetuam disparos acidentais, isso é coisa de homem. (Rosseti – 25 anos – 3 anos de corporação).
A associação da mulher ao papel de mãe de família, de dona de casa, tem sido entrave aos direitos da mulher no mercado de trabalho. A dupla jornada diária dedicando-se aos serviços domésticos de sua casa e aos serviços profissionais da corporação – objeto de enfrentamento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, lançado em 2004, pela Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres, do Governo Federal do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva – é anunciada pelas guardas, ao terem sido questionadas sobre como conciliam a vida profissional de agente de segurança e a condição de mulher e mãe. Identificam as dificuldades de conciliação desses papéis, mas lhes atribuem o rótulo de “super mulheres”, por conseguirem suprir as necessidades profissionais e familiares, gerando-lhes internamente uma sensação de vitória e importância, permitindo-lhes sentimentos de orgulho pessoal.
Outro fator de indagação de nossa pesquisa diz respeito a aparência física e à questão estética. Desde os gregos, a estética passou a fazer parte das idéias delimitadoras de um espaço ideal de atuação social, levando a mulher a adotar e aceitar no seu corpo “os critérios de comportamento cultural chamados estéticos, ensinando, que é preciso obedecer”. (Chaves, 1986, p.276).
Entre as mulheres da Guarda Civil Municipal, a aparência também representa um importante elemento nas suas relações cotidianas. Os padrões de beleza vigentes parecem interferir nas condições de trabalho, quando aquelas consideradas as mais
bonitas são convidadas a participar de eventos publicitários da corporação, obtendo também privilégios na escala de serviço:
Em toda área a beleza conta. Se um chefe precisa de uma secretária e aparece uma gordinha com experiência e uma morena com curvas salientes, saradona, de quem sra o cargo? Óbvio, será da saradona (sic) (Paula, 32 anos, 3 anos de corporação)
Dentre as várias condições de trabalho das mulheres na corporação de vigilância, a que imediatamente salta aos olhos, diz respeito à discriminação de gênero sofrida por suas profissionais.
As condições de trabalho, do ponto de vista feminino são muito difíceis, a começar pela carga horária para um trabalho realizado em pé, sob sol forte, particularmente nos períodos menstruais, isso aliado a outros problemas, como a dificuldade de encontrar nas ruas banheiros minimamente decentes.
As inovações nos uniformes de segurança não respeitam o corpo feminino, mesmo com o incentivo de ingresso de mulheres na corporação. Os coletes à prova de bala normalmente apertam os seios. Em períodos de menstruação, em que o corpo da mulher sofre um inchaço, ficando também mais sensível à dor, esses coletes, por serem muito justos e costurados no mesmo formato para o corpo masculino, acabam por machucar as guardas. O tamanho desproporcional do coldre, associado ao peso da arma, também causa dores na bexiga, rins e útero. As calças dos uniformes não possuem bolsos para carregarem absorventes higiênicos. Para as mulheres grávidas não existe fardamento diferenciado. Em relação a fisiologia feminina, esta é levada em consideração dependendo da sensibilidade do superior hierárquico. Alguns deles consideram a tensão pré-menstrual, o período menstrual e as decorrências da gravidez como empecilho à execução do trabalho
Das doze respostas obtidas à verificação desse fator cotidiano, pôde-se apurar quatro comportamentos existentes no relacionamento entre guardas homens e mulheres.
Alegaram serem tratadas com indiferença, com rispidez, com discriminação ou de forma “boa” (expressão que foi interpretada como cordial). No entanto, pode-se perceber que a pesquisa indicou, conforme aponta o gráfico abaixo, a percepção de que o relacionamento entre sexo na Guarda Civil Municipal de Santo André é profundamente marcado pela forma de discriminação de gênero.
Relacionamento com o sexo masculino
A B C D
02
04
06
08
10
12
A – Indiferença
B – Discriminação
C – Com rispidez
D - Boa
No questionário fora relatado que, com a chegada de um maior número de mulheres na corporação, desencadeou-se ali um ambiente de certa hostilidade entre os guardas de sexos diferentes, revelando-se ora de forma velada, ora explicitamente, mas sempre demonstrando que o relacionamento entre mulheres e homens nesse tipo de organização é permeado de ações discriminatórias, conforme descreve uma das guardas entrevistadas:
Fomos recebidas com discriminação, pois os guardas masculinos achavam e diziam que lugar de mulher era no tanque e no fogão, que não tínhamos capacidade e nem competência para fazer o mesmo serviço que eles. (s/nome – 28 anos, 4 anos de corporação)
Apesar de formalmente assentada na missão de "proteger e servir", o que se privilegia na identidade policial militar são, sobretudo as virtudes “másculas" e "guerreiras": "bravura", "heroísmo", força física, aptidão para o risco, virtudes de que as mulheres estariam, por hipótese, desprovidas. Como indica Jacqueline Muniz:
Idealizado pelos PMs da ponta da linha como uma espécie de "terra de machos", o mundo das ruas é descrito como um tipo de realidade que não se deixa comover pelas virtudes culturais atribuídas ao signo
feminino. Nesse território simbólico interpretado como sórdido, violento, insensível e, por tudo isso, masculino, parece só haver lugar para a disputa entre os destemidos "mocinhos" que integram o "bonde do bem" e os "bandidos" e desregrados, que compõem o "bonde do mal". Esse tipo de gramática dos papéis de gênero, em boa medida conservadora e estereotipada, encontra-se disseminada no interior da tropa. Dela resulta o discurso que pressupõe a inadequação das mulheres para as tarefas de policiamento e prescreve para elas outros tipos de serviços quase sempre burocráticos e muito distantes das atividades de rua”. (Muniz,apud Soares e Musumeci,2005,p. 87)
Para esta autora, essa ideologia estabelece um enfraquecimento da qualidade de "ser policial" entre os que estão aptos ao confronto e os que se dedicam a prevenir, proteger e mediar quer sejam mulheres ou homens. O policiamento comunitário, por exemplo, é visto muitas vezes como espúria "feminização" do trabalho como atividade cosmética, despida da virilidade própria da profissão não raro os estereótipos de gênero são explicitamente acionados na resistência interna a essas e outras inovações.
Se o relacionamento entre servidores homens e mulheres vem sendo marcado pela discriminação de gênero, que encontra endosso numa mentalidade tradicionalmente machista por parte dos guardas, no relacionamento entre as mulheres também se evidencia a mesma mentalidade, contudo marcada por comportamentos ciumentos, competitivos, desagregadores, oriundos, em especial das guardas mais antigas da corporação:
Nosso relacionamento “em geral é bom, mas existe certa discriminação das mais antigas com as mais novas” (Lourenço Rosseti – 25 anos – 3 anos de corporação).
(...) apesar da hostilidade de alguns guardas masculinos, prefiro trabalhar com eles, as mulheres guardas são muito melindrosas, querem espaço” (Paula – 32 anos – 3 anos de corporação).(...)
as GCMFs são muito competitivas e devido a isso geram muitos atritos. Muitas vezes o rostinho mais bonito é o que prevalece e não o profissionalismo” (Guerra – 38 anos – 4 anos de corporação).
De todos estes relatos, pode-se, em uma primeira análise, concluir que não havendo política institucional de gênero, nem um ideal defendido especificamente pelas
mulheres, por meio de mecanismo de afirmação coletiva de identidade, a imagem da GCMFs torna-se imprecisa, individualizada e sujeita também a avaliações individuais, baseadas na experiência empírica, quase sempre mediada por pré-noções, idealizações ou mecanismos de resistência:
Se tivéssemos de definir dois extremos entre os quais oscilam essas avaliações, o primeiro seria o endosso puro e simples dos estereótipos de gênero, como em alguns trechos de entrevistas já citados anteriormente, que destinam à mulher um lugar "natural" nos serviços internos, e o outro seria a negação pura e simples de qualquer diferença. (Soares e Musumeci, 2005, p.111)
Questionou-se também as entrevistadas sobre a ampliação dos poderes das GCMs. Pelas respostas, entende-se que as guardas civis femininas não visualizam claramente essa ampliação de poderes e, se de fato isso ocorrer, deverá haver restrições de poderes. No entanto, são mais contundentes ao afirmar a quase impossibilidade disso ocorrer, pois a Polícia Militar não permitirá tal ampliação:
existe um empecilho muito grande que é a Polícia Militar, e de quem vai controlar esse poder para que não fuja das rédeas do Estado. (Maria – 43 anos – 4 anos de corporação).
Da análise do I Seminário Regional das Guardas Municipais Femininas, realizado em 28 de novembro de 2003, que teve como objetivo avaliar a participação feminina nos quadros da política de segurança local, pôde-se verificar que a indefinição acerca do papel constitucional dos Guardas Civis Municipais evidenciou-se de forma mais aguda quando voltada para o papel da mulher nessa instituição e do difícil relacionamento entre homens e mulheres numa corporação histórica e tradicionalmente organizada em torno das características masculinas. O cotidiano de trabalho dessas mulheres é regido pelas relações de gênero que se estabelecem entre os guardas e com seus comandantes. Se a atuação da GCM na cidade já impõe uma discussão acerca da gestão municipal de segurança pública, a atuação da GCMF polemiza ainda mais a
discussão e permite resgatar práticas de trabalho policial ainda mais violentas e discriminadoras.
É importante lembrar que a polícia brasileira seguiu o modelo político de organização policial presente na França e em Portugal, estes não estão à serviço do público, mas do Estado e dos grupos dominantes, no sentido de fortalecer o uso privado da violência contra a sociedade, vigiando para que qualquer ameaça considerada subversiva ao poder público fosse contida pela força da opressão (Paixão, 1991). A conseqüência desse modelo de policia gerou no Brasil a desconfiança recíproca entre policiais e cidadãos. A reação do cidadão comum frente a polícia soma-se ao sentimento de medo, mesmo por pessoas que a princípio nada teriam a temer.
A própria formação praticada nas escolas da Polícia Militar, encontram-se alicerçadas na ideologia do exército, reproduzindo em sua organização as mesmas existentes no Exército Brasileiro, segundo os princípios de território a ser atacado ou defendido.
Coronel Carlos Alberto de Camargo, ex-Comandante Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, em seu livro Estética Militar (1997m), defende que os militares constituem uma instituição separada do povo, destinado a corrigi-los e a por ordem na vida coletiva. Como se nota:
nas instituições policiais brasileiras ainda prevalece a cultura policial tradicional de viés "bélico", com foco quase exclusivo na ação reativa e repressiva com baixíssimo investimento em inteligência, pouco ou nenhum treinamento dos agentes de ponta em técnicas de mediação de conflitos, nenhuma ênfase no uso comedido da força e da autoridade, pouca ou nenhuma preocupação com a legalidade e a legitimidade do trabalho de polícia. ”(Soares e Musumeci,2005,p. 82)
Nesse contexto, as atividades cotidianas de preservação da ordem pública, não gozam do mesmo status que as ações repressivas.
Pode-se deduzir daí a enorme dificuldade que as mulheres ainda terão de enfrentar para se afirmarem como policiais ou guardas uma vez que lhes coube a tarefa de prevenir, cuidar e orientar, sem que essa tarefa fosse assumida institucionalmente como referência de um novo modelo de polícia e policiamento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAGA, Carlos Alexandre. Guarda Municipal: manual de criação, organização e manutenção, orientações administrativas e legais. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999.
CAMARGO, Carlos Alberto. Estética Militar. Centro de Aperfeiçoamento e Estudos Superiores da Polícia Militar do Estado de São Paulo, 1994.
CHAVES, Anesia Pacheco. E agora mulher? Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986.
FUNDAÇÃO Seade e Assembléia Legislativa de São Paulo, 1999 – Cadernos do Fórum São Paulo Século 21 – Caderno 7: Segurança. São Paulo: Assembléia Legislativa.
FÓRUM METROPOLITANO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 2000. Relatório de Atividades, Resultados e propostas – 29/3/2001 a 28/06/2001.
PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PARA MULHERES - Secretaria Especial de Políticas Para Mulheres – 2004.
PLANO NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA – 2004.
PAIXÃO, Antonio Luiz. Polícia e Segurança Pública. O Alfares. Belo Horizonte, 9(30):27-41, Jul/Set.1991.
SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de General: 500 dias no fronte da segurança pública no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SOARES, Bárbara Musumeci. Polícia e Gênero: “Presença Feminina nas PMs. Brasileiras” In: Boletim Segurança e Cidadania, nº 02. Centro de Estudos de Segurança e Cidadania: Rio de Janeiro, 2004.
SOARES, Bárbara Musumeci, MUSUMECI Leonarda. Mulheres Policiais. Presença Feminina na Polícia Militar do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
DADOS DAS AUTORAS:
Heleni B. F. de Paiva Lino: Mestranda em Administração da Universidade IMES. Professora de Direito Constitucional e Direito do Trabalho UNIA.
Carla Cristina Garcia: Doutora em Ciências Sociais, com Pós dOutorado em Sociologia Política no Instituto Mora/México. Professora da Universidade IMES e PUC-SP
Priscila Ferreira Perazzo: Doutora em História. Professora do PMA da Universidade IMES